Arthur Gadelha
Fortaleza à Margem: o sonho de Rânia numa cidade pré-ruínas
ENSAIO Exibição inédita no Cinema do Dragão reforça a preciosidade do olhar sobre uma cidade que não muda tanto
"Rânia fica sempre voltando para nós", um dia comentou Roberta Marques sobre a eternidade de seu filme lançado em 2011 no Festival do Rio, de onde saiu vencedor do Redentor de Melhor Filme da Mostra Novos Rumos. É interessante perceber isso porque, embora tenha tido grande carreira de exibições em festivais e no próprio circuito comercial, a primeira vez em que o filme foi exibido no Cinema do Dragão foi na noite de ontem, lembrando a sua equipe que o filme ainda não concluiu o longo voo que toma as primeiras imagens da história.
A sessão fez parte da Mostra Fortaleza à Margem, programação construída em parceria da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine) e o Cinema do Dragão, concebida no contexto de aniversário do Centro Cultural Dragão do Mar. A mostra teve início na semana retrasada com a explosiva sessão de Medo do Escuro (2015) com trilha sonora ao vivo. Mesmo que agora num ritmo mais contemplativo, a sessão de Rânia (2011) teve sua emoção particular que foi, de seu modo, bastante reveladora ao olhar para o dito passado. Quando Estela sobe as escadas do antigo prédio do Cena15, comentei com uma pessoa ao lado: "esse lugar não existe mais". O mesmo quando surge o Estoril na Rua dos Tabajaras. O que mudou em Fortaleza para além dessa fisicalidade?
Gravado há quase 15 anos, “Rânia” constrói um olhar precioso sobre a cidade, sobre sua desestrutura, seus espaços e sua ocupação. O desejo de dançar, de voar, de brilhar, que de repente encara a imobilidade, a angústia. Graziela Félix e Nataly Rocha (Rania e Zizi, sua amiga) encaram tudo isso com um olhar de medo e coragem. É forte que o filme abra com uma Fortaleza de cima, dos prédios que sufocam a orla, essa margem de uma cidade que tá de cara pro mar e não pode partir nele. Rânia vê a jangada zarpar. Ela fica. Tem os pés na areia, sentindo a gravidade que insistiu em mantê-la no chão. Essa dita força que fundou Fortaleza não é uma só, tem pesos diferentes. Hoje será diferente? Essas perguntas vão ficando a cada nova sessão.
Enquanto Medo do Escuro (2015), Tremor Iê (2018) e Rodson (2020) - os outros filmes programados na mostra - se passam num futuro onde a cidade está em processo explícito de destruição, Rânia é o filme que se passa "neste nosso tempo", no olhar de uma cidade desigual, pouco inclusiva, na percepção de que os limites que sua protagonista enfrenta por não conseguir seguir o sonho na dança, tendo que dividir trabalhos e se ver adulta tão cedo, não são muito diferentes dos limites encarados pelos demais personagens distópicos.
Com isso em mente, o filme é ainda mais impressionante na tela. A fotografia da Heloísa Passos, especialmente, nos engole a cada novo frame, seja nas ruas, dentro de casa ou na construção contraditória de esperança e imobilidade que imprimem as passagens marítimas com navios e jangadas que navegam com horizontes definidos. Essa observação nos atravessa no tempo ao lembrar outra fotografia sua sobre a cidade em Fortaleza Hotel (2019), de Armando Praça, em que os sentimentos são transportados para o suspense da noite.
Aqui, debaixo do sol flamejante, Roberta Marques encaixa suas personagens de forma tão natural nesse espaço, nessa contemplação de um dito "paraíso" comedido, que as performances de Graziela Felix e Nataly Rocha nunca saem de sintonia. Estela, forasteira vivida por Mariana Lima, nunca é vista como peça central apesar de ser o motor de expectativa - ela nunca é, de fato, apresentada, o que fica sempre nos levando de volta a Rânia e Zizi que enfrentam futuros particulares.
A partida final, no último plano do filme, dói. Dói porque no longo plano-sequência em que nos distanciamos, nossa cabeça gira em círculos sobre o que está indo embora, o que está ficando, e somos abandonados sem qualquer certeza de que aquela Fortaleza tenha sequer mudado. Assistir a essa história tanto tempo depois nos deixa nesse estado de alerta, de questionar, de imaginar, de perceber, por onde estão as rotas de fuga.
Diante das ruínas aqui anunciadas, alegoricamente vistas em Medo do Escuro, escondidas em Tremor Iê e escancaradas em Rodson, o título desse texto vem da narração de Mateus Fazeno Rock em seu primeiro álbum Rolê nas Ruínas. Assim como esses personagens, a experiência de alguém que parte da margem e atravessa uma cidade mediada pela desigualdade e pela violência dos vendidos superiores, nas instituições e na sociedade. Como ele canta, "a cidade como um rio é... uma estrada procurando a outra".
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