Arthur Gadelha
Sem piedade, "Carvão" se esconde entre o cru e o cruel
CRÍTICA Exibido no Festival de Toronto, primeiro filme de Carolina Markowicz chega aos cinemas brasileiros causando uma tensão ininterrupta
Inevitavelmente, quando as primeiras imagens dessa estreia da Carolina Markowicz chegam à tela disfarçadas de "carinho" para em seguida serem atropeladas por uma tensão imensa, sou levado a uma obra de caráter bem semelhante: A Mesma Parte de um Homem, da paranaense Ana Johann. Em ambos, uma realidade acanhada que é atravessada pelo barulho de um intruso que, aos poucos, é ele mesmo engolido pelo que acreditava ter domínio. Além disso, também a ambientação isolada, a clausura de uma família desmedida, a fotografia fria e até mesmo as contradições que partem do impulso sexual. Silenciosamente, esses dois filmes nos enganam: enquanto o ritmo faz questão de parecer manso, estão mesmo é preparando explosões a olho nu - e o fato delas nunca acontecerem, de fato, é o que os dá uma sensação que dificilmente sobrevive sozinha em filmes insensíveis: a crueldade.
Carvão, no entanto, avança de forma mais assertiva nessa digestão porque apresenta essa condição no mesmo momento em que começa. Juraci, a agente de saúde familiar da região, chega para trocar o oxigênio de um idoso que vive debilitado, sem comunicação, estirado na cama de uma casa aos pedaços. Depois de uma fala gentil, o inesperado olhar agressivo, mórbido e cru. Propõe ao casal que hospedem um traficante argentino que precisa "desaparecer" por uns dias - a ideia, claro, vem junto de outras mais agressivas.
Sem nem mesmo anunciar nada, a personagem se revela como um pedaço sem camadas, sem disfarces, sem piedade - assim é o filme a partir de então, sem fé, ríspido, duro. As decisões que se sucedem são todas mediadas por um impulso incontornável e desmedido, principalmente pela naturalização de todas as barbaridades. Diante disso, surpreende que uma história tão uníssona consiga ser imprevisível.
O conflito do traficante escondido, por exemplo, pode parecer à primeira vista a ruptura que há de mais importante nessa observação do que se transforma, mas sua presença sem demais explicações só recebe atenção diante das armadilhas que já estavam dispostas naquela realidade. Ao invés de dar início a hostilidade, ele age como um catalisador dessa temperatura, dando velocidade ao que já caminhava sorrateiramente. Os segredos de Jairo, o medo de Irene, a espera de Jean - essas condições, a qualquer momento, colidiriam.
Nessa equação, entram as atuações construídas justamente na ambiguidade. Em destaque na condução dessa tensão, Maeve Jinkings e Rômulo Braga atuam como peças quebradas, irritadas - se não estão sintonizados entre eles, por outro lado, parecem reagir da mesma forma à precariedade em que vivem. Apesar das violências "sem barulho" que vemos invadir àquela casa, sabemos que essa insensibilidade não nasceu agora, e nem pelo intruso.
Camila Márdila, Aline Marta Maia e César Bordón endossam essa constatação essencial para que possamos nos relacionar com o suspense, mas a presença de maior impacto é tão quieta e explosiva quanto o próprio ritmo do filme: Jean Costa, a criança de 9 anos que está ali observando e embarcando, aos poucos, no esquema. Sua forma de falar e interagir nos denuncia cedo que seu personagem é o centro de tudo. Demora para o filme assumir isso, mas o faz.
Diante de todas as explosões, a criança está lá, ciente da crueldade que se revela na sua frente - ao pôr isso em destaque, Carvão constrói Jean como a peça do jogo que naturaliza o mundo no rumo da crueldade. A última cena, justamente com ele agindo num faz-de-contas, concretiza essa percepção inconsolável e o filme nos abandona com a mesmíssima tensão com que se apresentou. Ao invés de sugerir um ciclo, Carolina Markowicz constrói um caminho sem volta.
Direção e Roteiro: Carolina Markowicz
Produtora: Zita Carvalhosa
Coprodutores: Karen Castanho, Alejandro Israel
Elenco: Maeve Jinkings, César Bordón, Jean Costa,
Camila Márdila, Romulo Braga, Pedro Wagner, Aline Marta
Fotografia: Pepe Mendes
Edição: Lautaro Colace
Música: Filipe Derado e Alejandro Kauderer
Edição de Som: Diego Martinez/Filipe Derado
Direção de Arte: Marines Mencio/Natalia Krieger
Figurino: Gabi Pinesso
Comments