Tiradentes: "Açucena" olha ao redor do culto
CRÍTICA Descrito pela curadoria da 24ª Mostra de Tiradentes como um suspense original, a estreia documental de Isaac Donato é até acolhedora
Sinto que o primeiro plano dessa história é bastante emblemático ao ponto de resumir duas coisas muito importantes da obra: sua intenção de mistério e a futura apresentação, à partir da realidade, de um mundo aparentemente de fantasia. O que indica essas sensações são a trilha sonora arranhada de um clássico filme de terror, a intimidadora luz vermelha que surge pela janela do quarto e a iluminação específica da cena: é um convite ao dia ou à noite? É esse clima de suspense, revisitado apenas outra vez durante o filme, que dá início contundente ao que os curadores da mostra detectaram ser um "novo gênero cinematográfico".
Essa "simples" história sobre uma senhora de 67 anos, apaixonada por bonecas, que se prepara para a esperada festa em que comemora seus 7 anos, é documentada de forma incomum porque a personagem principal desse enredo curioso pouco aparece no meio da teia de personagens reais e materiais. Nesse sentido, o filme de Donato não tenta provar para a audiência nada sobre sua existência - não sabemos o contexto dessa festa ou a origem de sua paixão por bonecas, conhecemos quase nada dessa senhora. Por outro lado, reconhecemos ao fim da projeção a importância absoluta desse acontecimento evocado como culto.
Açucena é sobre os arredores do seu objeto, os preparativos da festa e, consequentemente, sobre a forma como essas pessoas interpretam o evento. Familiares e vizinhos conversam ao longo do filme sobre o que devem fazer, e quando, e essa estrutura física-emocional é realmente tão mais curiosa que a simples existência da protagonista porque, dessa forma, o contexto é apresentado da maneira mais natural possível. A adoração das imagens (bonecas e estátuas) como se fossem santos católicos numa casa de interior, por exemplo, é registrada num estado nada misterioso.
A fotografia de Flávio Rebouças é esperta diante da intenção (que talvez more totalmente no campo extra filme), filmando essas conversas pelos cantos, pelas bordas, encontrando apenas os reflexos (como num micro-ondas que abre esse texto), recortes físicos de seus entrevistados, está tudo à distância. Apesar do suspense explícito ficar na trilha ocasional, a sensação persegue na direção pela forma como Açucena não aparece e o mistério é mantido (sem tantas promessas) em torno dessa personagem que mobiliza um pequeno universo ao redor.
Por outro lado, o filme confia tanto na irreverência de documentar aquilo que torna o acontecimento respeitável e indiscutivelmente real, que certa "passividade" prejudica seu ritmo. Numa missão que parece ser dar mais relevância à naturalidade dos movimentos, falas e ações, a montagem de Marcos Lé e Andressa Santos os estende de forma exaustiva - uma sensação que fica apesar dos seus curtos 71 minutos. A impressão de curiosidade e respeito, no entanto, ainda é uma das marcas mais louváveis dessa obra. Uma história de fantasia e de certa clausura que, de alguma forma, combina com essa sensação pós-2020, uma coisa assim entre o medo e a esperança.
★★★
Direção: Isaac Donato
País: Brasil (BA)
Ano: 2021
Essa crítica faz parte da Cobertura da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes
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