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  • Foto do escritorArthur Gadelha

“Medida Provisória” e o filme que se vê de perto

ENSAIO Estreia na direção de Lázaro Ramos é um projeto de coragem e curiosas contradições

Reassistindo hoje, percebo que Aquarius (2016), de Kleber Mendonça Filho, é um filme muito diferente daquele que vi em meio a tantos rebuliços. Naquele ano, queda trágica de Dilma Rousseff da presidência, a esquerda brasileira fez muita questão de enxergar na Clara de Sonia Braga a metáfora acidental sobre uma mulher na defesa de sua honra contra o "capital" que queria lhe expulsar de casa. Diante da manifestação no tapete vermelho de Cannes contra o então interino Michel Temer e da seguinte polêmica na indicação do filme brasileiro para concorrer ao Oscar internacional, ficava mesmo muito difícil dividir as coisas. Aquarius, porém, sempre foi algo além disso. A briga entre Clara e a construtora Bomfim não é entre forças necessariamente antagônicas - ela, mulher rica, inclusive com outros imóveis em posse, larga na frente nesse combate entre esferas do poder se formos considerar outros tantos conflitos sociais por moradia no Brasil. Não se discutiu tanto a alienação, o elitismo e nem mesmo o racismo que contornam a existência dessa protagonista. Sempre esteve tudo lá, só não parecia o momento propício para enxergar de tão perto.


Começo com esse exemplo porque é o que me leva a pensar, cada dia mais, sobre o que é propriamente essa estreia de Lázaro Ramos na direção de longa-metragem. Protagonizado por Alfred Enoch, Seu Jorge e Taís Araújo, Medida Provisória é tão ambicioso quanto minimalista na forma de dar vida a tantas discussões atemporais sobre a violenta história desse país. Na trama, baseada na peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, uma lei obriga a "devolução" de todas as pessoas negras para o continente africano, projeto que tem como objetivo deixar o Brasil um país "100% branco". Carregando esse conflito com muita tensão do começo ao fim, concluído de tal forma para chacoalhar sua audiência no ponto certo de fantasia, Medida Provisória é, por vários contextos, um filme de mensagem tão objetiva que não é bem surpresa que do lado de cá se responda de forma eloquente.


Ao fim da sessão de pré-estreia, os aplausos em reverência ao familiar Lázaro Ramos no palco do Cineteatro São Luiz me lembraram a comoção que havia vivido naquele mesmo espaço com a exibição de Bacurau (2019). Os motivos e suas conexões com o Brasil são bastante diferentes, principalmente por só um deles proporcionar um debate sobre a produção e distribuição em larga escala sobre o cinema feito por artistas negros brasileiros. Minha impressão, porém, dada a manifestação cultural que acontecia ali a olho nu, é de que, naturalmente, esse era um filme que se vê de perto.


Na utopia de uma revolta pacifista, assumida pelo Lázaro enquanto uma declarada subversão às imagens recorrentes no cinema brasileiro, algumas ideias podem soar estranhamente ambíguas. Como Marighella (2019), de Wagner Moura, que optou por uma narrativa simplista sobre a complexa existência política do militante, Medida Provisória (2022) é como um filme moldado para comunicar seu protesto de forma familiar, aparentemente televisiva, construindo por isso raciocínios conflitantes. O exemplo principal, e até bastante questionado por textos críticos, é a cena em que duas mortes completamente distintas de contexto são literalmente espelhadas pela montagem e, para não parecer equívoco, reforçadas em texto, como se o filme estivesse justificando alguma semelhança ali. Bem como a constante recusa do combate, a simplicidade na forma como o conflito se estabelece, se protege e é desfeito - são sensações incompletas, como a discussão do aborto, a negação da arma e o engasgado "apoio branco" pelo lado de dentro.


Apesar disso, muitas outras sensações são integrais e transmitem do seu modo esse pulso diante da injustiça no Brasil de hoje, de sempre, como fica bem desenhado no manifesto extra-filme que há no "epílogo" sob a arrepiante voz da Elza Soares, flertando diretamente com a fantasia num palpite de que a abstração, ou a utopia, são respostas poderosas por si só. Também é curioso que nessa trama exista tanto espaço para a construção do humor no personagem vivido pelo Seu Jorge, talvez partindo da própria experiência do Lázaro nas séries e novelas da Globo para articular sua história com novos públicos, construindo uma personalidade imprevisível.


Se essa "leveza" for para bater de frente com as comédias acríticas que a Globo lança no cinema, o caminho convence pelo ineditismo apesar de tudo. Arrecadando cerca de R$2 milhões em sua estreia, o filme encostou justamente numa dessas reciclagens, Tô Ryca 2, história que se esbanja nos estereótipos envelhecidos sobre a desigualdade socioeconômica brasileira, com direito até a piada com "cabelo de pobre". Um abismo os separa.


Assim como Aquarius, Medida Provisória é sem dúvidas impossível de esquecer, principalmente nesse contexto de retorno das atividades presenciais diante da pandemia. É um filme "alto", emulado na urgência e mergulhado no caos, sabe comover na mesma medida em que deixa dúvidas - se elas não estão sendo massivamente discutidas agora, que seja quando finalmente o assistirmos de longe.

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