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  • Foto do escritorArthur Gadelha

Protesto contra “Vingadores” no Brasil expõe um clamor ácido de resistência nacional

ANÁLISE Diante de uma naturalização comercial, mal-estar cultural se torna ainda mais indigesto


Nesta semana, a notícia de que o quarto filme da franquia “Vingadores” ocupou 80% das salas comerciais brasileiras causou reboliço nas esferas nacionalistas da arte, principalmente do campo de críticos, jornalistas culturais, espectadores e cineastas, que propuseram um boicote ao filme em defesa do cinema brasileiro. O motivo desse protesto pode parecer pífio aos fãs da saga que não aceitam a relativização da experiência preparada por mais de 10 anos por algumas das maiores empresas norte-americanas, em especial a Walt Disney Studios, um dos maiores conglomerados do entretenimento que chegou no meio da conversa e tomou o assunto para si. Nessa briga entre gigantes e minúsculos, como esse protesto pode ter um caráter político genuíno?


No dia 19 de março, o diretor-presidente da Agência Nacional do Cinema (Ancine), Christian de Castro, suspendeu o repasse de verbas para produção de filmes e séries, promovendo a primeira paralisação da agência no Governo Bolsonaro – lembrando com uma exatidão assustadora o apagão que a Gestão Collor promoveu no incentivo ao cinema brasileiro. É uma situação de alarme interno nos novos parâmetros conservadores da gestão, já que muito antes da extrema-direita assumir o poder, o cinema brasileiro teve muito mais inimigos de expansão na esfera internacional. Para entender porque “Vingadores: Ultimato” consegue hoje atenção de 80% das salas brasileiras, é preciso voltar à origem do cinema enquanto mercado e reviver tantas das nossas histórias.


Entre o nacional e o liberal, o falso desenvolvimento


Entre os anos 1930 e 1945, O Brasil viveu a intensa e polêmica Era Vargas. Getúlio Dornelles Vargas assumiu como 14º presidente do Brasil e se instalou no país como um grande populista, principalmente por ter criado a Justiça do Trabalho e implantado os principais direitos trabalhistas hoje ameaçados pelo projeto do Ministro da Economia Paulo Guedes: salário mínimo, carga-horária de 48 horas, carteira profissional e férias remuneradas. Mas Getúlio, em meio a atitude ditatoriais, também tinha suas ideias liberais, principalmente quando se referencia ao produto internacional.


Em 1929, os EUA eram um dos principais compradores do café produzido no Brasil, e as relações eram estreitas com a esfera federal. Seis anos mais tarde, em 1935, o Tratado de Comércio assinado entre os países garantia uma “troca” de produtos. Enquanto o Brasil poderia entrar com produtos de extração e matérias-primas com isenção de taxas e encargos, o país norte-americano foi mais esperto no processo de imposição cultural, incluindo filmes como produtos a serem exportados. O historiador Jean Claude-Bernadett, em seu livro “Cinema Brasileiro: Propostas para uma História” parafraseia o item 1601 citado na tabela: “Filmes cinematográficos impressos em 16 mm de largura”.


Não pelo cinema que sequer desfrutava de uma indústria formal no país, mas pela importação de outros produtos similares existentes no Brasil, muitos industriais tentaram resistir ao projeto, chegando a convencer parlamentares para atrasarem a negociação. No entanto, o próprio secretário de Estado dos EUA, Cordell Hull, aproximou-se para garantir a aprovação do projeto em setembro de 1935, que então seguiu para o Senado com o sucesso. É claro que a consciência era outra, pois garantir a expansão da exibição no Brasil já era significado de desenvolvimento, como afirma Bernadett: “Como então propor uma limitação de importação?”


A peça do Estado na engrenagem


A aproximação do Brasil com os EUA fabricou diversos momentos peculiares ao longo do século XX, passando pelo apoio de Getúlio na Segunda Guerra Mundial e até mesmo no apoio explícito da gestão de John F. Kennedy ao Golpe Militar de 1964 no Brasil. É interessante perceber que por suas dimensões continentais, o Brasil se tornou desde cedo um alvo de controle para o país de maior política da América. Não parece muito diferente de quando os portugueses precisavam ter o controle da cultura no Brasil – não podemos, por exemplo, dizer que demos às costas aos colonizadores que massacraram nossos povos indígenas, se o último Censo do IBGE apontou que 86,8% dos brasileiros são cristãos. Chega a ser engraçado agora dualizar com o dado de 80% das salas brasileiras com um único filme norte-americano.


Em outro texto, escrevi sobre as limitações que tornam o Brasil um país difícil de ser premiado no Oscar, principalmente porque hoje somos o resultado perfeito dessa história que se oficializa antes da metade do século no país que sempre alcançou pequenos atos protecionistas à passos lentos. No Brasil já houve decreto para exibição de curtas brasileiros com cada longa, e a exigência nacional nas salas já foi de apenas um filme brasileiro por ano. Como enfrentar a facilidade do produto estrangeiro no Brasil se não pelo Estado?


A lei 12.485/2011 sancionada pela presidente Dilma Rousseff definiu a exigência de no mínimo 3h30m por semana de conteúdo brasileiro nos canais fechados, o que não incentivou apenas a veiculação nesses meios, como impulsionou a abertura de novas produtoras. Em pelo século XXI, não podia ser a mesma discussão de Vargas, que se contentava com a exibição – é preciso se preocupar com a formação e produção física e intelectual do Brasil. Enquanto isso, o mesmo se discute na hoje fragilizada União Europeia. O projeto de lei que exige 30% de conteúdo regional em empresas estrangeiras de streaming foi aprovada em outubro de 2018, o que afeta diretamente a “vida fácil” que tem a Netflix e Amazon Prime, por exemplo. No Brasil, a lei 12.485/2011 ainda não exige nada da Netflix, mas ela vem se adiantando na produção de filmes e séries com equipe nacional.


O clamor ácido e sincero


É óbvio que “Vingadores: Ultimato” não é o culpado pela onipresença nos cinemas brasileiros, mas é o fato de representar com tanta veemência a indústria que o criou e o fez ser aceito em todo o mundo que o torna alvo das críticas. Os outros três filmes da franquia, assim como os últimos Harry Potters, Jogos Vorazes, e tantas sagas populares, invadiram do mesmo jeito os cinemas brasileiros, e representavam a perspectiva da mesma necessidade. Filmes que custam U$ 300 milhões precisam arrecadas os bilhões ao redor do mundo, afinal são muitos os outros gastos com marketing e adaptações de linguagem – para essa indústria, o consumidor precisa sempre estar alinhado com o que está sendo produzido. As centenas de filmes de drama, terror, ficção científica, etc, que são lançados semanalmente precisam preencher o ideário brasileiro do pensamento norte-americano exatamente para que grandes eventos, como Vingadores, possam acontecer.


A crítica de cinema Isabela Boscov comentou uma vez que admirava a geração levada aos cinemas por “filmes de herói ou Harry Potter” (como foi o meu caso), mas questionou em seguida se essa mesma parcela está no cinema para “ver somente isto”. Não há como saber se o fã de Vingadores que se emociona com fim da saga que viu amadurecer só se relaciona com essa narrativa, ou se está aberto à linguagem do cinema como ela é em todo o mundo. Por isso essa discussão é impossível de existir na esfera da individualidade; não há como julgar pessoas e o ponto é não aceitar para onde nos leva o movimento.


Para os cineastas brasileiros que usaram Vingadores como o ápice do desrespeito da indústria ao produto nacional, e ainda mais com esse histórico de abertura ao imperialismo cultural, é lógico entender que o modo como o sistema se instala no país é violento – e sempre foi, é bom deixar claro.


Instala-se um dilema se o consumidor brasileiro pode ou não se envolver com essa arte estrangeira, e essa perspectiva simplista parece tola para questionar diante tudo que vivemos. O que os artistas clamam é por desenvolvimento, este completamente injusto de afeição regional pelo gigantismo sem piedade que todos esses filmes estrangeiros representam. É possível relativizar, tornar as coisas mais simples e não defender o boicote, principalmente porque significaria mexer diretamente com a afetividade proporcionada a uma geração, mas também parece injusto deslegitimar um ato de resistência por parte de quem efetivamente vive o desafio da afirmação – afinal, essa é só mais uma das tantas histórias que se repetem na nossa tão conturbada identidade cultural.

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