A comédia cearense e a insistência num humor que ofende querendo ser inclusivo
Na última década, o Ceará produziu filmes das mais diversas linguagens ao viver, em 2019, um novo momento de reconhecimento nacional - a comédia, no entanto, ainda bate na mesma tecla
Parece inviável que um público ligado a pautas identitárias possa se divertir com a transformação, tão simplista quanto maniqueísta, que passa o protagonista de Bate Coração, longa dirigido por Glauber Filho que estreou no dia 07 de novembro. O filme chega aos cinemas encerrando um período de grande repercussão do cinema cearense pelo Brasil, ano em que tivemos Inferninho, de Guto Parente e Pedro Diógenes; Pacarrete, de Allan Deberton; e Greta, de Armando Praça. Mas Bate Coração não está preocupado em fazer parte desse cinema que eferve interpretações, preferindo ficar onde a comédia cearense também ganhou méritos por permanecer onde sempre esteve.
Nele, André Bankoff vive Sandro, um hétero cafajeste que passa a respeitar o próximo após receber o coração de uma pessoa travesti. Na tela, sua homofobia e misoginia são naturalizadas ao serem incorporadas ao desenvolvimento da própria narrativa. "Isso mesmo, não tem jeito, a gente tenta, mas a gente gosta mesmo é de um cafajeste", confessa uma personagem em bom alarde numa conversa entre amigas. O tom é de deboche cômico, mas isso é verdade nessa história, a pensar sobre como surge o amor entre a médica “durona” e o tal cafajeste depois de “amolecer” o coração. A transformação de Sandro, de um homem bruto para alguém sensível, exige uma frouxa repetição de "maneirismos gays" que já vimos em inúmeras novelas da Globo. Por que isso ainda se repete em 2019?
O mesmo aconteceu com a franquia Cine Holliúdy, de Halder Gomes, que rendeu dois dos maiores sucessos de bilheteria de longas cearenses no Brasil - mas diante seus sucessos indiscutíveis, não houve uma preocupação considerável por parte da crítica eufórica em torno da perpetuação legitimada desse estereótipo sexual na tela como humor.
Claro que não é a intenção desses filmes se tornarem mensagens conservadoras sobre a figura LGBTQ resumida ao escárnio sobre sua existência em sociedade. Afinal, há artistas LGBTQ de grande talento na frente e por trás das câmeras - atores, cantores, performers, etc. - e há, por isso, um esforço visível em ressignificar essa comédia, travestindo-a de respeito devido a uma propriedade intelectual da equipe, mas a mensagem que está ao centro desse humor independe da boa intenção para gerar interpretações ofensivas.
Meu tio homofóbico que passou um semestre rindo do Crô, alívio cômico da novela Fina Estampa, da Globo, riu também em Cine Holliúdy 2 - seja do Sérgio Malheiros que interpreta o ator que não pode viver Lampião por ser “claramente gay”, ou de qualquer personagem gay que na tela de Halder só consegue expor pensamentos fálicos (essa literalmente é a única piada dos personagens nos dois capítulos da franquia).
Esse incômodo não invalida todas as mensagens positivas que ainda permanecem nessas obras, quer queira como sejam projetadas. Em Bate Coração, o roteiro vira de pernas pro ar pra se tornar uma história de superação sobre a importância da doação de órgãos, e os filmes de Halder trazem na paisagem poética uma romantização da experiência social do cinema, especialmente no interior do Estado, que é muito bonito de se ver rodando o Brasil.
Neste pensamento aberto, que serve mais como reflexão do que como julgamento, levanta-se como essas decisões acabam se apropriando de um contexto ultrapassado para compôr um humor tão ofensivo quanto abraçado pelas mesmas peças que o constroem. Claro que o humor, especialmente o cearense “de bar”, vive de elencar estereótipos porque são lugares-comuns de representação para a plateia: a sogra, o cachaceiro, a sapatão, o corno, o viado… E esses filmes produzidos aqui, no Ceará, apenas se ancoram nessa aparente “identidade regional” para fazer uma história popular de aceitação imediata - não à toa são roteirizados e dirigidos por homens héteros.
É possível que haja mérito nessas histórias por fazerem com que esses personagens sejam engraçados tanto para uma parte do público LGBTQ (que não vê problema na representação), quanto para um público conservador que reconhece o espaço gay, lésbico, trans, travesti, etc., apenas como gatilhos cômicos. Por essa ótica, é amplamente compreensível o porquê dessas obras se tornarem sucesso pelo Brasil - mas será que é realmente esse diálogo que nos emociona?
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