Arthur Gadelha
Lar além do mar: o cinema de Kamal Aljafari
ENSAIO Sem os protocolos de um documento ativista, cineasta palestino dedica sua carreira na decodificação das imagens, memórias, sons e arquivos de uma terra-natal invadida
“Até que ponto a materialidade real e figural de uma imagem pode se transformar em uma abstração ou, mais longe ainda, em um espectro?”, perguntam as curadoras Carla Italiano e Carol Almeida para apresentar Kamal Aljafari no 10º Olhar de Cinema. Por ser um cineasta com pouca circulação nos debates brasileiros para além de situações pontuais, a escolha da sua filmografia para ocupar a Mostra Foco do festival curitibano se prova, a cada novo filme, uma decisão precisa – especialmente num ano em que voltaram à mídia mundial discussões territoriais que nunca adormeceram.
Em três curtas e quatro longas que ganharam vida ao longo de quase 18 anos, Aljafari olha para sua própria casa com um mútuo olhar de pertencimento e distância, buscando formas de traduzir esse complexo sentimento de lidar com a ausência de uma justiça que honre as perdas irreparáveis de um todo um povo. Olhando de perto para as negligências institucionais diante da sobrevivência do território palestino e das culturas que o ocupam, o cineasta compõe um mural de lamento tão afetivo, e até mesmo mágico, quanto melancólico e irremediavelmente cruel.
Sentindo a cidade desaparecer
Eu quero minha casa de volta!, grita furiosa uma mulher que acabou de ter a sala da sua casa demolida pelo acidente de uma obra que estava em curso. Enquanto filmava O Telhado (السطح ,2006), seu documentário mais diretamente autobiográfico na procura de um encaixe de si mesmo numa família partida pela guerra, Kamal estava lá para registrar a natural metáfora que significa ter seu lar arrancado por decisões fora do alcance. Para expor a importância moída quando aquelas paredes foram abaixo, a mulher vocifera os nomes de todos que nasceram e morreram ali.
Essa cena cristaliza um dos traços mais recorrentes do cineasta, e provavelmente o mais central nas discussões que propõe, que é a anunciada admiração pela forma como as contradições e violências estão impregnadas nas texturas das construções e das ruas, tornando a cidade um objeto de fascínio até mais complexo que as pessoas. Sem a intenção, porém, de privá-las, mas de posicioná-las como paralelos imediatos da imobilidade de uma vida urbana condenada – então as cicatrizes, no corpo e na memória, de cada um que se abre no seu cinema, são análogas às rachaduras das paredes, portas e varandas dos espaços que elas ocupam. Se os que fugiram por conta da guerra impediram o povo árabe de reivindicar até mesmo a própria língua, os que ficaram (ou voltaram) se viram obrigados a se tornarem a cidade tal qual as ruas, e as imagens testemunhais se transformam nesse documento supremo que só o cinema seria capaz de traduzir.
Em seu primeiro filme, o curta Visite o Iraque (زورو العراق ,2003), o centro da discussão já é a representação de um espaço da cidade como objeto forasteiro: o lugar europeu onde funcionava uma agência da companhia aérea iraquiana Iraqi Airways. Vazio já há algum tempo, mas não passado para nenhuma outra empresa, o ponto de esquina é mantido ali com visão integral aos “escombros” do lado de dentro. O espaço é o dispositivo e as pessoas reagem – já nesse primeiro gesto de cinema, surge uma dinâmica que seria tão elementar para a futura filmografia. Então Kamal vai escutando pessoas que alimentam memórias afetivas, ou apenas referenciais, com aquela imagem morta. “Um lugar que os árabes eram bem-vindos”, revela um transeunte, sorrindo, lembrando das conversas. Um ponto de venda de viagem que era quase uma embaixada.
Fissura pelo corpo da imagem
Alguns de seus experimentos são mais compositivos e performáticos do que individuais ou categoricamente pertencentes às estruturas de um cinema formal. Enquanto Varandas (الشرفات ,2007) reúne uma série de sacadas arranhadas e destruídas de sua cidade, Recordação (استعادة, 2015) vai atrás de imagens que dizem a mesma coisa, mas no âmbito também da ficção. Aos seus modos, um com sete minutos e o outro com 70, esses filmes sinalizam uma radicalização na busca do tempo que mora na autossuficiência das cenas, percebendo a deterioração das construções e os desdobramentos dessas marcas.
Recordação, em particular, lança mão de um dispositivo subjetivo que é a imaginação, proposta à audiência para que a relação com aquela cidade alheia seja tão dinâmica e interativa quanto o próprio autor quando buscou revivê-las. Reunindo imagens de diferentes anos e origens, caseiras e profissionais, de filmes e gravações aleatórias, essa sequência leva a memória ao experimento de outra cidade litorânea: Supermemórias (2010), de Danilo Carvalho, que “coleciona” imagens de Fortaleza gravadas em super8 dos anos 1960 aos 1980 – curiosamente, período bastante próximo ao recorte de Kamal. Em ambos, a reunião de memórias alheias para a confecção de um passado impresso imageticamente no mural de imagens e na cartela de sentimentos próprios de quem assiste.
Porém, muito diferente da jornada afetiva de Danilo, Recordação é talvez o maior prisma sobre o culto do cineasta aos detalhes da cidade, objeto que domina solitário essa imersão ao longo dos 70 minutos. Com raríssimas cenas internas, o lado de fora, exposto em sinais e escombros, surge como a cidade-fantasma de Cococi, no Ceará, que ilustra os misteriosos filmes de Petrus Cariry. Aqui, quando as pessoas aparecem nos registros, são novidades tão surpreendentes que precisam ser captadas por zoom, e repetidas na montagem, dando a impressão de que se escondem das câmeras, dinâmica que expande a introdução do filme na sobreposição da cidade com as pessoas que desaparecem.
Há um momento em que a intervenção de Kamal vai literalmente entrando nas imagens, como se as observasse por um microscópio de laboratório na busca por seu destino, sua parte indivisível, encontrar o átomo daquelas recordações num subjetivo processo de apropriação. Nesse passo, outras intervenções da filmografia merecem ser destacadas, como a viagem visual que há de forma tão quieta em It’s a Long Way From Amphioxus (جميعنا اتينا من هناك, 2019), filme onde uma infinita, repetitiva e conformada fila de pessoas, na espera de uma distribuição de números, gera uma brevíssima conversa sobre a automação apática das cidades – para isso, Kamal deixa as pessoas onde estão, mas imagina que quem foge são os números, literalmente.
Mais do que se encaixar em percepções convencionais de cinema, o impulso do cineasta é por montar essas cenas como provas para o futuro, projeto tão rigoroso que aceita experiências tão uníssonas em discurso numa forma compulsoriamente repetitiva. Apesar de por vezes tediosos, vistos no corpo coletivo possibilitado pelo Olhar de Cinema, esses filmes experimentais ganham curtas potências como apêndice do que está posto com mais critério narrativo em outros filmes quase paralelos – o que não significa que esses estejam impedidos de proporcionar experimentos visuais e sonoros, marca de inventividade que Kamal mantém.
A quem pertence a história e sua imaginação?
Esse é um cinema que busca encontrar os rastros do passado nos gestos do presente, na forma como as pessoas lidam com essas consequências de forma sóbria e objetiva, deixando a memória guiar os sentimentos serenos de uma indignação secular. A cidade dessincronizada com o povo que a ocupou, confundindo o conceito do forasteiro com o próprio conterrâneo, constrói na tela onírica de Kamal um conflito vivo que também está nas texturas de uma casa em construção. Em O Telhado ela não está pronta, e nunca estará, e Kamal sequer propõe documentar qualquer desfecho, mas apenas a reação de sua família com este fato.
Em Porto da Memória (ميناء الذاكره, 2010), a casa é negada, anunciando um povo que tem seu lar constantemente substituído. Kamal reconta uma história que todos nós juramos saber por cima, por reportagens generalistas e que evocam todos os estereótipos sensoriais (e sensacionalistas) de guerras, mas sem materializar a imagem e voz do povo, fazendo o relato da informação soar conivente com seu descaso.
As imagens desumanas que circularam neste ano, por exemplo, sobre a fuga do povo afegão com o retorno do Talibã, tanto conduziram afeições de preocupação, como cristalizaram no campo reacionário um julgamento de culpa sobre os que são afetados diretamente. "Por que permanecem lá?", perguntam alguns pensamentos cruéis, esquecendo arbitrariamente que o lar e a identidade são superiores a qualquer intervenção. No filme, ora há indignação e revolta (na repetição de um grito móvel pelas ruas), ora conformidade e esperança (de se manter a casa), negando que exista um problema.
Se até aqui seu impulso parece consolidado no movimento de um infinito arsenal de imagens, seu último filme lançado é um gesto na oposição, dedicado ao mesmo enquadramento por 80 minutos. Em Um Verão Incomum (صيف غير عادي ,2020), uma câmera de segurança instalada no passado pelo pai se transforma num dispositivo para eternizar o tempo numa rua familiar. Inicialmente debruçado na compenetrada missão de descobrir quem vinha quebrando as janelas do carro, o filme vai se tornando aos poucos uma narrativa menos centralizada na finalidade, contradição que anuncia ainda no prólogo.
“As irmãs Imses são costureiras, nunca as vi separadas” – as lembranças começam a invadir a suposta investigação num velado tom de carinho que custa a aparecer e ganhar espaço, como quando uma voz de criança irrompe o silêncio da missão. Nesse curso, saltam sobre arquivos os sons encenados, lembrando novamente algo que Recordação intercalou com fantasia. À medida em que essa soma vai se estabelecendo, Kamal faz o que não tinha feito ainda: começa a conversar com a imagem, perguntando diretamente para ela e aguardando respostas 15 anos depois. “Este não é mais o nosso país”, relembra ter ouvido da boca do pai, hoje falecido, mas ainda vivo na época em que esses registros foram captados.
O passo da melancolia cantada
Com um cinema introspectivo, mas nada silencioso ou conformado, o autor reivindica que essas imagens e lutas sejam atualizadas e banhadas de traços humanos e sensações reais sob a imposição do desapego e da expulsão; e há muita música nessa narração, elemento importantíssimo de se ressaltar. Para compartilhar um exemplo, há um plano muito simples e importante em O Telhado, quando a câmera desliza sobre a cidade noturna e assiste, por alguns segundos, uma senhora sentada num andar em construção, contemplando a paisagem quieta – então nós ouvimos uma vibração vocal bem meditativa que entrega à cena uma emoção impossível de existir sem ela.
Em Recordação, há espaço até para a invasão de um clipe musical, cujo trecho da letra está referenciado no título desse ensaio. Em outro momento, quando um instrumental sutil invade as ondas monocromáticas do mar, as imagens soam inéditas, e por isso secretas, acessadas num momento de devaneio que pode ser esquecido logo em seguida na inevitável ação de abrir os olhos. No desfecho de O Telhado, enquanto caminha pelos escombros de outra casa (alimentando a imaginação de que muitas memórias foram expulsas dali), surgem os créditos finais sob a voz de Souad Massi, preenchendo o passado e a invenção de certa melancolia.
Sem nunca ensaiar um fim, essas histórias vão ressoando num ciclo de sonho e pesadelo, atravessadas por uma vontade de viver o que restou, de redescobrir essas sensações e construir novos capítulos. Mais do que qualquer outro propósito aparente, em suma, o que Kamal Alfajari faz em sua carreira até aqui nessa década cercada, é filmar a saudade.
Agora você está ao meu lado
Mas amanhã, quem sabe?
É assim que o mundo é
Doce e amargo ao mesmo tempo
Seu amor me intriga
À noite eu não consigo dormir
Por que você me faz sofrer tanto?
A primavera não dura para sempre
E as rosas murcham no final
Estou no caos, estou no caos.
Pense em mim
Ninguém além de você
Ninguém além de você
Ninguém além de você entrou no meu coração.
Ninguém além de você
Ninguém além de você
Não há ninguém além de você no meu coração
Ghir Enta - Souad Massi
Esse ensaio compõe a cobertura do 10º Olhar de Cinema
Perfil do cineasta no site do 10º Olhar de Cinema:
Kamal Aljafari é um cineasta e artista visual formado pela Kunsthochschule für Medien (Academia de Arte e Mídia) em Colônia, Alemanha. Ele foi um dos artistas participantes no Seminário de Cinema Robert Flaherty de 2009 em Nova York e foi bolsista Benjamin White Whitney no Radcliffe Institute and Film Study Center da Universidade de Harvard em 2009-2010.
Com publicações semestrais, essa seção se debruça sobre a carreira de cineastas para propor conversa entre suas obras na busca de traços convergentes (ou dissidentes) no processo evolutivo em cada filmografia. Confira os próximos:
Sondar templos pessoais: o cinema de Kelly Reichardt (2022.1)
Ser jovem é ser sobrenatural: o cinema de horror da Anita Rocha da Silveira (2022.2)
Reconduzindo a realidade: o cinema de Glenda Nicácio e Ary Rosa (2023)
Comments