Arthur Gadelha
Em ‘Happy Mistake’, Lady Gaga atravessa o baralho do Coringa para enxergar a própria caricatura
Na expectativa da estreia de seu próximo filme "Coringa: Delírio a Dois", cantora norte-americana lançou novo álbum inspirada pela personagem
“Estou atuando nesta peça de comédia com palavras trágicas. O público estava sorrindo”, canta uma melancólica Lady Gaga na abertura de “Happy Mistake”, nova música do seu projeto Harlequin. No tom da sua voz a pronúncia revela sinceridade, uma percepção clara e mais direta impossível sobre a sua conhecida imersão teatral às dezenas de personagens já incorporadas na sua carreira musical. “Minha cabeça está cheia de espelhos quebrados, tantos que não consigo desviar o olhar”, canta no refrão.
Numa cena de ‘Joker: Folie a Deux’, um personagem no tribunal clama para que o Coringa volte a ser Arthur Fleck, ao que ele responde: “Então você acha que este não sou eu? Talvez você nunca tenha sabido quem eu realmente sou” – esse diálogo, por si só, parece justificar imediatamente a existência de Lady Gaga neste filme, esta mulher de mil faces que nunca está nua e crua no palco. Até mesmo a sua “naturalidade” – vista na era Joanne (2016) – é performática, fabular, deixando-se ser vista por espelhos que, apenas do lado de cá, parecem vidros transparentes.
As personas de Lady Gaga estão lá dentro, misturadas de si mesma na construção de uma personagem que precisa estar sempre em crise para existir. Por isso canções como The Fame (2008), Bad Romance (2009), Marry the Night (2011), ARTPOP (2013) e Replay (2020) sempre vão existir na sua discografia, de novo e de novo, porque elas traduzem o que sempre esteve no centro do palco: Lady Gaga é uma personagem quebrada, que só existe nos fragmentos.
A canção “Happy Mistake” se une a essa lista de composições, mas desta vez com uma ironia melancólica, num lamento que é contraditoriamente uma celebração. Ela não está reclamando porque não quer e nunca poderá deixar de lado sua mutação. Quando canta “Posso tentar me esconder atrás da maquiagem mas o show tem que continuar”, não está falando conosco, mas com ela mesma, negociando essa forma tão arranhada de existir e ser artista.
Eu me sinto tão louca
Minha cabeça está cheia de espelhos quebrados
Tantos que não consigo desviar o olhar
Estou em uma situação difícil
Se eu pudesse consertar os pedaços quebrados
Então eu teria um erro feliz
O Coringa – o piadista, o palhaço, vindo do nome original Joker – é também esse arquétipo de alguém suspenso da realidade e por isso solitário na própria loucura. Na regravação de The Joker (1968), ponto máximo deste seu novo álbum, ela invade a imagem do bobo da corte, “o único súdito a quem era permitido zombar o rei sem o risco de perder a cabeça”, poder que dá a essa figura uma interpretação macabra por trás da sua risada e de quem ri dela.
O pobre bobo risonho cai de costas
E todos riem quando ele está derrotado
Sempre há um homem engraçado no jogo
Mas ele só é engraçado por engano
E todos riem dele do mesmo jeito
Ninguém vê seu coração solitário se partir
Ninguém se importa, contanto que haja um bobo, apenas um tolo
Tão tolo quanto pode ser
Sempre há um coringa, essa é a regra
Mas o destino dá as cartas que eu vejo
O Coringa sou eu
No filme de Todd Philips, vencedor do Leão de Ouro em Veneza há cinco anos, o Coringa de Joaquin Phoenix incorpora um bobo da corte que reage à humilhação a qual era submetido, dando voz a uma revolta que não estava no script do seu comportamento e desmonta toda a moralidade do personagem que existe para além dos quadrinhos. Ele desiste do seu lado humano e faz da máscara o seu próprio rosto, assim como ser Lady Gaga, a personagem e suas personagens, é como ser o palhaço, o bobo ou o próprio coringa, é aceitar a queda e a quebra de cada espelho ao ponto de não ter mais um reflexo original.
Independentemente do que seja de fato o filme “Coringa: Delírio a Dois”, sequência que estreia na próxima quinta-feira 03 de outubro, a sintonia conceitual entre esses fragmentos de um personagem dos quadrinhos e a própria figura da Lady Gaga parece tão natural que talvez realmente fosse apenas questão de tempo até chegar a ela. Agora que chegou, vamos ver o que farão - e o que fará ela.
Beba o veneno, porque sempre há um perdedor no jogo
A corte adora vê-los chorar
Os nobres gritam: Esta rainha precisa cantar
Para bagunçar a cena do crime
O rei veste uma roupa engraçada, ele é um palhaço
A multidão estronda com seus rugidos
E todos assistem enquanto ele recusa
A rainha o atravessa com uma espada
Eu não me importo, contanto que haja um louco no baralho
Contanto que eu veja sua carranca
Então não vou ficar sozinha, isso é um fato
Eu fico aqui esperando pelo som dele, ha-ha-ha
O coringa sou eu, o coringa sou eu
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