Arthur Gadelha
"Chromatica": diante das cicatrizes, redenção ou despedida?
ENSAIO Em seu sexto álbum de estúdio, Lady Gaga traz de volta a era pop-dance enquanto lembra das feridas que a fama manteve aberta nos últimos 10 anos.
“Eu não sei o que fazer, você não sabe o que dizer. As cicatrizes na minha mente estão em replay. O monstro dentro de você está me torturando. As cicatrizes na minha mente estão em replay, re-replay”
É uma conversa entre duas Ladys Gagas na 12ª faixa que Chromatica expõe uma sensação até então adormecida de conflito pessoal no conceito do projeto. Seu sexto álbum de estúdio, que estreou em plena pandemia, é uma síntese consciente do que a levou a fama deixando dúvidas corajosas. “Por favor, escutem do começo ao fim, não embaralhem, é a minha verdadeira história”, tuitou Gaga assim que o álbum foi lançado nas plataformas de streaming. ‘Chromatica’ é uma redenção ou uma declaração de amor?
A artista jovem e porra-louca que surge em 2008 era uma curiosa figura que ficou famosa debochando, contraditoriamente, das condições da fama. The Fame falava da indústria, dos jogos de interesses, do glamour e da antipatia diante à realidade que deixa de existir a quem é escolhido para seguir esse rumo. Mas Gaga foi “comprada” por esses produtores por ser uma artista estranha, aspecto que nem sempre vai poder estar às amarras desse pop automático.
The Fame Monster deixa o glamour de lado e revela o monstro que existe em sua peculiaridade, reverenciada com emoção descarada em Born This Way, uma história de celebração da estranheza que fez parte da identidade de muitos jovens LGBTQ+ dos anos 2010. O renegado ARTPOP propõe um casamento perigoso e pouco amoroso: e se a Lady Gaga artista pudesse se unir a Lady Gaga rentável que o mercado demanda que ela seja, projetando uma relação harmoniosa entre as partes? “We could, we could, belong together artpop”.
Disso tudo, o que chega a Chromatica? Uma Gaga atravessada por dores físicas e emocionais, uma artista constantemente reconstruída para a mídia e para os fãs. Declarou-se frágil em Joanne, viu a fibromialgia interromper sua carreira, invadiu Hollywood com o filme Nasce Uma Estrela e se viu presa a uma residência em Las Vegas. A artista que sobreviveu ao próprio pop é a que, agora, toma as rédeas com um grau de afirmação arrepiante.
Ok, é um álbum 100% dançante e enérgico, mas… Para além do que faz com seu corpo, o que ela está realmente dizendo? “Replay”, “Babylon”, “Enigma”, “Fun Tonight”, “1000 Doves” e “Alice” são histórias sobre essa cantora que não é nem inovação e nem caricatura de si, alguém que sempre esteve lá, cantando com as dores da mente, das drogas, da mídia, da busca por significado para uma arte de consumo imediato e global.
“Poderíamos ser amantes, mesmo que apenas por essa noite. Poderíamos ser o que você quiser. Poderíamos quebrar todo o nosso estigma. Eu serei seu enigma”
O que realmente é Lady Gaga? Ela gosta ou não de existir debaixo dessa personagem? “Você ama os paparazzi, ama a fama. Mesmo sabendo que isso me causa dor”, diz uma Gaga para a outra em ‘Fun Tonight’. Em outro momento, revela algo semelhante: “É um jogo que eu jogo, e odeio dizer. Você é a pior e a melhor coisa que me aconteceu”. Chromatica parece, então, um acerto de contas entre todos os significados que foram construídos para sua identidade pop — pelos fãs, pela imprensa, por seus vários produtores e, óbvio, por ela mesma. Como disse no Twitter, essa parece ser “a sua verdadeira história”, mesmo que contada de forma tão sucinta.
Gaga faz você dançar, em pleno 2020, com uma história sobre as feridas, quase um convite a celebrar seus defeitos porque fazem parte de você. É o que também diz “Rain on Me”, parceria com Ariana Grande: “Eu preferia estar seca, mas pelo menos estou viva… Chova em mim…”. “911”, um dos destaques mais empolgantes do álbum, é ainda mais cruel ao expor novamente as Gagas em conflito com o uso de antipsicóticos: “Minha inimiga sou eu desde o primeiro dia”.
“Free Woman”, “Plastic Doll” e “Sour Candy”, parceria inesperada com o grupo sul-coreano BLACKPINK, cantam sobre a fuga da mulher que essa mesma indústria exige como reflexo de uma sociedade machista que a controla. Uma discussão de “liberdade” presa ao possível que reflete sobre sua permanência como imagem: “Não brinque comigo, isso só me machuca. Estou subindo pelas paredes. Não, não, não, eu não sou sua boneca de plástico”.
Por último, a vontade de entender a tradução "pop" de sentimentos é o que parece guiar “Stupid Love” e “Sine From Above”, essa última surpreendente dividida com Elton John (alguém realmente esperava uma rave bate-cabelo dessa parceria?). Canções onde Gaga expõe seus doces sentimentos bregas sobre o que faz. É fofo, vai… A busca pelo amor no mundo e na arte, essas megalomanias que o pop adora evocar.
Mas diante de todas essas histórias ácidas sobre dor e aflição, a mensagem de Chromatica talvez seja a mais objetiva de todos os seus trabalhos até aqui: “dancem seus filhos da puta!!!!”, como a própria Gaga vociferou virtualmente ao anunciar o lançamento do disco em suas redes sociais.
“Babylon”, que encerra essa jornada de maneira brilhante, grita ao fim com um coro assombroso: Battle for your life!”. No contexto de Chromatica, você pode “lutar por sua vida” dançando sozinho em plena quarentena, abraçando seus traumas, tristezas, cicatrizes e aflições incansavelmente ao longo de 43 minutos. Uma jornada de expurgo desses seus inimigos, um convite à explosão de si mesmo.
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